O Escutismo visto pelo seu dirigente mundial

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Entrevista a João Armando Gonçalves No contexto da sua visita à Madeira, João Armando Gonçalves — Presidente do Comité Mundial do Escutismo — concedeu uma entrevista exclusiva ao Educatio Madeira. Dirige o órgão executivo da Organização Mundial do Movimento Escutista (OMME), entidade que congrega cerca de 40 milhões de membros de mais de 220 países e territórios. Foi orador convidado no Seminário ‘CNE Madeira: que futuro?’, organizado pela Junta Regional da Madeira do Corpo Nacional de Escutas, em novembro de 2016. Nascido em Leiria e residente na Figueira da Foz, é Professor-Adjunto no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra (ISEC), na área do Ambiente Urbano, e investigador no Centro de Investigação do Território, Transportes e Ambiente, da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. A relação entre o Escutismo — o maior movimento mundial de juventude — e a Educação revela-se central nesta entrevista. Educatio (ED)— No Escutismo, o desenvolvimento de valores para a vida, de competências e de capacidades está associado a um código ético de comportamento. Estas são palavras vãs ou têm aplicação real? João Armando Gonçalves (JAG)— O Escutismo tem subjacente — e faz parte da sua matriz inicial, do seu método — o código ético comportamental.

Os elementos que nós consideramos do método [escutista] decorrem da adesão livre ao compromisso com a Lei do Escuteiro.

Os jovens são chamados a compreenderem-na e a comprometerem-se perante ela. Na Lei do Escuteiro — que tem dez artigos — falamos da honra, da confiança, da lealdade, da amizade para com os outros, da pureza dos pensamentos. As várias propostas que são feitas constituem, de facto, a matriz ética daqueles que aderem ao movimento.

Para nós, nesse compromisso formal — que cada um dos jovens faz quando entra para o Escutismo — está a proposta [ética] que lhe é feita.

Tentamos, de modo adequado a cada uma das idades, que os jovens possam entender o tipo de compromisso que estão a fazer e que possam, depois, aderir a esse compromisso na perspetiva de que prometem fazer o seu melhor para, a cada dia, terem esses valores presentes na sua vida.

Para nós, é muito claro que essa vivência se faz no quotidiano, quer nas atividades escutistas quer na vida pessoal.

ED — O Escutismo está, historicamente, associado a atividades ao ar livre. Este é um ponto fulcral, um pormenor limitativo ou apenas uma parte da história deste movimento? JAG — O ar livre é uma parte integrante, também, do nosso método de educar. E não apenas porque faz parte da tradição.

Sempre entendemos o ar livre como um ambiente educativo.

Ou seja, o fundador do Escutismo dizia que o ar livre podia ser visto como um campo de aventuras, um sítio de exploração e até um templo. É nesse sítio que podemos, talvez, encontrar-nos com entidades superiores (para quem acredita) e questionarmo-nos sobre o nosso papel neste mundo.

O ar livre não é uma obrigatoriedade, uma limitação, mas um mundo de oportunidades que podemos explorar e onde os jovens são confrontados com um conjunto de desafios.

Quando os jovens vão acampar e lhes é dito que «nos próximos sete dias, este é o vosso ambiente, não há comida feita, não há conforto» e são eles próprios que vão construir as suas mesas, montar as suas tendas, enfim, organizar o campo onde vão viver durante aqueles dias, tudo isso constitui um desafio que apela à criatividade, às vezes, até ao desenrasque. É uma enorme oportunidade para que os jovens possam ser estimulados no seu desenvolvimento pessoal. Hoje em dia, obviamente, a natureza representa um bem para muitas pessoas e para muitos movimentos educativos.

Para nós, há mais de 100 anos que a natureza representa um bem, precisamente por ser um local que, do ponto de vista da educação não formal, tem uma riqueza enorme.

ED —  “Be prepared!” é o lema original. O Escutismo, enquanto educação não-formal, prepara um jovem para ser um elemento preparado e ativo na sociedade, nomeadamente a nível social e político? JAG — Sim, estamos convencidos de que o Escutismo prepara os jovens para serem cidadãos ativos.

É isso que está escrito na nossa Declaração de Missão e a cidadania para nós tem as duas dimensões, social e política. Política, não no sentido de partidária, mas no sentido da intervenção.

Ou seja, com as nossas atividades e com aquilo que os jovens vão vivendo, há um ganho, há uma aquisição de uma consciência social e política, nesta perspetiva de querer mudar, de querer criar um mundo melhor. Aliás, esse é um dos nossos lemas. Começamos por fazer pequenos projetos na nossa comunidade, pequenas intervenções e, de alguma maneira, aos poucos, os jovens vão ganhando essa consciência de que fazem parte de um todo maior, de uma comunidade, e que têm o poder de transformar.

Essa transformação pode ser feita de várias maneiras, desde a escola, desde o trabalho, desde a sua rua; essa capacidade transformativa existe.

Depois, obviamente, [pode ser feita] ao nível do que são as instituições, do que são as estruturas que estão instituídas. Por exemplo, na escola pode ser pela associação de estudantes, na freguesia pode ser pela junta de freguesia, pode ser pelo grupo desportivo, a ideia é que, de alguma maneira, os jovens possam participar dessa ‘Pólis’, como diríamos num sentido mais geral. Do ponto de vista político, isso é claro nesta aceção mais genérica; do ponto de vista social, parece que também é evidente, relacionado com o que já afirmei anteriormente.

Há um conjunto de competências sociais que se vão desenvolvendo pelo contacto e pelo conhecimento de outras pessoas, até do ponto de vista mais global, porque o Escutismo tem uma dimensão global muito forte.

Portanto, há um conjunto de competências de socialização que se vai desenvolvendo, desde o grupo mais pequeno, até a esta casa comum a que chamamos mundo. ED —  Qual é o fator diferenciador do movimento escutista em relação a outros movimentos educativos? JAG —  Mais diferenciador é o facto de ser uma educação ativa, ou seja, uma educação que se socorre de métodos ativos. […]

Digo muitas vezes que o nosso método de educar é um método muito particular, é diferente dos outros.

Não quer dizer que seja melhor ou pior, mas temos um método próprio, com componentes específicas, como educar através de atividades, da experiência e do aprender fazendo. Passa muito pela tentativa e erro, por experimentar fazer coisas, aprender pela ação e poder corrigir se a coisa não correr bem. Esse é um dos fatores importantes, mas depois temos outros, como sejam o trabalho em pequenos grupos, nas patrulhas, nas equipas.

Na relação que se estabelece entre cada um dos jovens e o educador, há uma relação individual que, para nós, é muito importante, porque cada jovem é diferente do outro.

A natureza é outra das componentes do método. Temos também a lei e a promessa, com o tal código de conduta. Temos ainda um certo sentido de simbologia, um conjunto de rituais e tradições que fazem parte deste método. Há um outro elemento muito importante que é a dimensão internacional, a dimensão global, e o facto de os jovens escutistas pertencerem a uma família muito grande, de cerca de 40 milhões.

Esta dimensão global do Escutismo é-lhes dada de forma muito próxima e muito facilmente.

É mais uma das dimensões que o Escutismo tem, do ponto de vista educativo, e das mais-valias que, provavelmente, o diferencia de outras escolas de educação. ED — Robert Baden-Powell fundou o Escutismo num período histórico em que o desenvolvimento industrial se impunha, paulatinamente, nas sociedades ocidentais. Na atualidade, o mundo vive desenvolvimentos assimétricos, em sociedades com características pré-industriais, industriais e pós-industriais. O método escutista permite dar resposta às necessidades diferenciadas dos jovens em cada sociedade? JAG —  Esta capacidade adaptativa do movimento escutista, ao longo do tempo e no mundo inteiro, é uma das marcas mais importantes enquanto organização e explica o seu sucesso.

Não haverá muitos movimentos que tenham resistido durante tanto tempo — estamos a falar de quase 110 anos — e que tenham uma expressão tão global. Nós somos 40 milhões espalhados por mais de 200 países e territórios.

É precisamente essa capacidade de poder responder às necessidades dos diferentes ambientes sociais, económicos, etc. que me parece fascinante e que explica esse sucesso. Como digo muitas vezes, fazer Escutismo no Benim, por exemplo, não é o mesmo que o fazer nos Estados Unidos. As necessidades são diferentes, as características sociais são diferentes e as respostas do Escutismo são adaptadas a isso. Possivelmente, os jovens do Benim serão equipados com competências muito próprias, que poderão vir a ser úteis enquanto cidadãos daquele país, com necessidades muito específicas. Quando o Escutismo proporciona competências do tipo vocacional e fornece atividades relacionadas com aprender a cultivar uma pequena horta, quando proporciona competências relacionadas com o comércio de produtos para que os jovens possam apoiar a economia familiar, estas são coisas muito diretas.

Um dos objetivos do Escutismo é o de apoiar as pessoas nas suas necessidades.

Na Europa, poderá ser a educação para os valores ou o respeito pela diversidade, pois há outro tipo de características que serão mais importantes. Ora, o Escutismo tem precisamente esta latitude e consegue responder — respeitando o método de que vos falava antes e com o tipo de atividades que faz — a essas diferentes necessidades.

Não tenho dúvidas de que essa é uma das características mais importantes do movimento e da organização que lhe dá suporte: o conseguir adaptar-se aos vários ambientes.

Até do ponto de vista da expressão, muitas pessoas veem o uniforme como uma coisa dos escuteiros e, em muitos sítios, é. Mas, há alguns locais do mundo em que comprar o uniforme não é possível ou é muito difícil e não é por isso que as pessoas deixam de ser escuteiras. Esta capacidade adaptativa é uma mais-valia do movimento. ED —  O Escutismo integra e interliga jovens de todo o mundo. Como consegue fazer esta conjugação e respeitar as características da cultura de cada um? JAG — […] Tenho dito, algumas vezes, que há este sentido de fraternidade e que, às vezes, nós encontramos outra pessoa que nunca vimos na vida, mas, que só pelo facto de ter um lenço ao pescoço é como se fizesse parte da família.

Há um enorme respeito pelas convicções e pelas diferenças culturais do outro. Mais do que respeito, o Escutismo aproveita isso como instrumento de educação.

O movimento escutista reúne-se a cada 4 anos. Organiza um Jamboree, um grande encontro que atrai escuteiros de todo o mundo. O último foi realizado no Japão, no ano passado, e reuniu quase 40 mil escuteiros. É verdadeiramente uma enorme festa de descoberta do que é o ‘outro’, do que é hoje ser cidadão do mundo e do que é ter, no mesmo local, uma ‘cidade’ de 40 mil pessoas com várias culturas e religiões. Trazer essas pessoas todas ao mesmo local, durante 12 dias, é proporcionar aos jovens uma experiência absolutamente inesquecível, porque, pela primeira vez, estão em contacto com realidades totalmente diferentes e podem explorar, podem descobrir aquilo que é ser um jovem da sua idade noutro canto do mundo, completamente diferente, e essa convivência faz-se de forma muito normal e muito saudável.

Neste último encontro no Japão, uma das áreas foi a das ‘Fés e Convicções’, onde grande parte das religiões estava representada com ‘stands’ e atividades.

Os jovens podem ter acesso e compreender o que significam [as religiões]. Posso-vos dizer que foi uma das áreas de atividade mais populares durante o Jamboree, das mais bem cotadas pelos jovens. Foi um daqueles dias em que as pessoas que organizavam as atividades estiveram em grande cooperação, a ajudarem-se uns aos outros, a montar os stands em grande convívio.

É uma coisa especial, talvez difícil de compreender para quem não é escuteiro, mas temos esse respeito e utilizamos as diferenças como riqueza e como factor de descoberta, não como fator de divisão.

ED —  Como está o Escutismo em Portugal? No caso específico da Madeira, o que nos reserva o futuro? JAG — O Escutismo em Portugal está de saúde. Existem duas associações [– a Associação de Escoteiros de Portugal (AEP) e o Corpo Nacional de Escutas (CNE)]. Pelo cargo que desempenho, não acompanho com grande proximidade o que vai acontecendo.

Nos últimos anos, tem-se verificado um crescimento, ainda que pequeno, do efetivo em Portugal.

Convém não esquecer que estamos num cenário demográfico em que temos cada vez menos jovens e poderá vir a acontecer que isso também se reflita no movimento, tal como acontece nas escolas.

Ambas as organizações são estáveis e sólidas, participando ativamente no movimento ao nível europeu e mundial.

São organizações que têm uma grande solidez do ponto de vista doutrinal. Se pensarmos nos princípios e no Escutismo desde a sua origem, estas conservam grande parte desses princípios originais. Viver o Escutismo de forma tão intensa é, de facto, uma das marcas que têm. Portanto, do ponto de vista geral, as coisas funcionam bem.

Ao nível da Madeira, não acompanho bem, mas, segundo o que me foi dado a conhecer pelos contactos que tenho ultimamente, parece registar-se estabilidade.

Um dos problemas que me foi comunicado foi o facto de ser difícil mobilizar adultos para desempenhar funções como educadores e dirigentes dos escuteiros. Este é um problema que existe não só ao nível da Madeira, mas até a nível europeu e mundial. Apesar de sermos um movimento que acredita que o ato educativo se centra no jovem e que o jovem é o protagonista do seu próprio desenvolvimento, acreditamos também que isto não se faz sem uma presença do adulto.

Não é uma presença de imposição, mas é uma presença de acompanhamento e de apoio.

Parece-nos que isso é essencial, pelo que esta dificuldade de mobilizar adultos é uma preocupação existente a vários níveis e, pelos vistos, também na Madeira. Desejo que isso possa vir a ser ultrapassado a breve trecho. ED —  Para finalizar, como prospetiva o desenvolvimento do Escutismo mundial? JAG —  A nível mundial, as prospetivas que existem são positivas e de grande esperança. O movimento, há pouco tempo, decidiu uma nova visão, uma nova estratégia.

A estratégia vai no sentido do crescimento, de conseguirmos atingir mais pessoas, de conseguirmos tocar a vida de mais jovens e de podermos, dentro de uma dezena de anos, ser 100 milhões em vez de 40 milhões.

Esta questão do crescimento não é apenas porque queremos ter mais números, mas precisamente porque acreditamos nesta missão. Acreditamos que o movimento escutista contribui efetivamente para os tais cidadãos ativos de que o mundo precisa e para a felicidade individual de cada um deles. É nessa perspetiva que temos acordado esta visão, nesse posicionamento do Escutismo como o maior movimento de educação não formal do mundo. Hoje em dia já o seremos, mas gostaríamos de reforçar esta ideia. Está em mais territórios. Haverá alguns, poucos, aos quais o Escutismo ainda não chegou. Mas, mais do que isso, nos territórios onde já existe, [é essencial] poder reforçar a sua posição, expandir o seu efetivo.

Queremos, por um lado, tocar a vida das pessoas, tornando-as melhores e mais felizes e, por outro lado, ter uma intervenção positiva, através dessas pessoas, naquilo que é o desenvolvimento do mundo.

É assim que nos vemos, nesta dupla abordagem: individual, por um lado, numa perspetiva de desenvolvimento pessoal, mas também, coletiva.

Acreditamos que as pessoas que passam pelos escuteiros e por esta experiência em conjunto podem, realmente, ter um impacto positivo nas comunidades e no mundo.

Credit: Educatio, the Regional Secretariat of Education of Madeira, Portugal